segunda-feira, 21 de maio de 2012

Resenha - Os Sertões

por Manuela Fernandes

Os Sertões é uma obra literária de Euclides da Cunha que trata, por meio de um relato jornalístico tingido de emoções de um povo quase que esquecido, sobre a história de Canudos, quase um morte e vida Canudos. Para tal, o autor se vale de uma estrutura de divisão de capítulos muito inteligente ao intitular cada capítulo com os nomes dos personagens centrais de todo esse enredo: a Terra, o Homem, e a Luta.
Euclides irá tratar da terra como se viva estivesse, com emoções e adjetivos referentes a um ser vivente. E muito mais do que um simples personagem, a Terra será o palco dessa narrativa, sendo um importante elemento da resistência que serviu ao povoado de Canudos. Dessa forma, é possível perceber a dualidade que o Sertão guarda em si, pois ao mesmo tempo que passa a sua aridez e a eternidade de um deserto sem fim aos estrangeiros, "aquela flora agressiva abre ao sertanejo um seio carinhoso e amigo". Além disso, a forma poética como o autor tratou da terra chega a ser um dos brillhantismos da narrativa, o que pode ser comprovado ao dizer que " a região incipiente ainda está se preparando para a Vida: o líquen ainda ataca a pedra, fecundando a terra". E mesmo dotada de todo esse humanismo de vegetação que vive, tal personagem, a terra, "predestinava-se a atravessar esquecidos os quatrocentos anos da nossa história", sendo marginalizada assim como os habitantes dela. Outro aspecto que é tratado com tamanha humanidade é o caráter protagonista que a região assume ao se deparar com o fenômeno natural da seca, conhecida como o martírio secular da Terra, sendo "o reflexo da tortura maior, mais ampla, abrangendo a economia geral da Vida". Dessa forma, diante dessa tamanha explanação sobre um assunto que muito mais do que um simples discurso geográfico, o autor prepara o seu leitor para o que será o palco de uma guerrilha, dando-lhe informações suficientes, além de explicar das causas de uma resistência sertaneja em Canudos.
Após toda essa explanação, ainda que aparentemente enfadonha sobre a terra no ritmo do sertão, mas necessária, Euclides começa seu capítulo sobre o personagem vivo literalmente: o Homem. Nesta segunda parte do livro será tratado, primeiramente, questões antropológicas juntamente de teorias racistas, entendo-se o homem por meio de uma visão determinista, ou seja, produto do meio, raça e somado do momento histórico. Chega-se a conclusão de que o homem dos sertões do Norte estaria subjugado a uma seleção natural, sujeito a uma "progressão inversa prejudicialíssima entre o desenvolvimento intelectual e o físico". Logo, tal homem, devido também a sua localização geográfica de isolamento morfológico teriam perdido "todo o aprumo e este espírito de revolta". E essa análise das raças e de todos os tipos humanos que convergem por aquela região, irá justificar a completude do homem protagonista que se quer falar sobre: o sertanejo, produto de uma intensa mestiçagem derivada de inúmeros cruzamentos uniformes. Nasce então a figura do Hércules-Quasímodo, o qual, ainda que retrógrado, diante do isolamento social e geográfico sofrido, não chega a ser um degenerado, envolto por uma aparência física que mascara a sua real essência de um herói da marginalização social.
Como se tem visto, bem como toda essa mestiçagem culminou no nascimento da originalidade que é o sertanejo, a cumulação de fatos desagradáveis que pode acontecer na vida de um homem resultou no nascimento de um monstro - "o anacoreta sombrio, cabelos crespos até o ombro, barba inculta e longa; face escaveirada; olhar fulgurante; monstruoso, dentro de um hábito azul de brim americano" -, Antônio Conselheiro, um líder natural, que domina àquela massa de crentes por falta de opção, sem querer fazê-lo. E é nesse contexto de pura mestiçagem ( de homens, de religião, de ideologias) que surge Canudos, "velha fazenda de gado à beira do Vaza-Barris". Canudos é expressão máxima de uma sociedade de marginalizados nacionais, parados no tempo e no espaço e esquecidos por toda a população nacional, que mal tinha conhecimento do que exatamente eram aquelas futuras vítima de um ato de injustiça em prol da "ordem e do progresso".
Por fim, estando o palco montado e os personagens inesperadamente prontos, é chegada a hora da Luta, capítulo este em que o autor irá abordar sobre um verdadeiro massacre, de uma guerra injusta, estando de um lado as forças que já se declaravam campeãs e do outro lado "uma convergência espontânea de todas essas forças desvairadas, perdidas nos sertões", reduto de um "banditismo disciplinado". A luta, por assim dizer, teve um estopim desproporcional quando se analisa o resultado de todo o episódio de Canudos, tendo consistido no não recebimento do material - certa quantidade de madeira - para o remate da igreja nova. A partir desse momento, a "luta" - termo que chega a ser paradoxal para o que de fato aconteceu - despontou; e o que se esperava acabar imediatamente, demandou em quatro expedições no total da parte da República.
O que se vê no decorrer do embate são dois oponentes militarmente desproporcionais, não tendo os sertanejos todo o armamento bélico de que se valia os soldados. O que se viu foram táticas de guerrilha da parte dos jagunços, os quais se valeram de seu meio natural, da terra, como maior aliado. Portanto, esse "antagonista que vê e não é visto" consegue resistir a quatro ataques, resumindo nisso a "guerra de Canudos". Além disso, é interessante observar a visão deturpada que se tinha de Canudos, sendo visto como uma grande e real ameaça para a sociedade e à nacionalidade, um verdadeiro câncer que deveria ser destruído a todo e qualquer custo. Entretanto, observando a realidade da população sertaneja, percebe-se o verdadeiro marketing feito pelos republicanos, representando Canudos apenas um reduto da marginalidade brasileira, esquecidos, passando de um armazém da miséria para um hospital de sangue ao fim da guerra. Enquanto o número de óbitos da parte dos soldados era irrisível diante de seu contigente, "os sertanejos deixavam 115 cadáveres, contados rigorosamente", como se vê após a primeira investida do exército. Juntamente disso, ainda que o próprio autor tenha descrito o sertanejo como sendo antes de tudo um forte, é possível ver ao longo dos massacres o desespero do povo, o qual ia perdendo as crenças que o haviam empolgado, quebrando-se o encanto do Conselheiro, o qual era restabelecido com novos milagres, ou seja, o combustível daquela nação,por assim dizer.
Sendo assim, o desfecho da obra, relatos de um episódio que infelizmente de fato aconteceu, nos remete a uma análise da importância e das consequências que um discurso pode acarretar. O discurso, presente em ambos os lados, permitiu a formação de uma "nação de fanáticos", liderados por um líder atípico, numa região atípica, subjugados a uma sobrevivência atípica; bem como permitiu a justificação das loucuras - resultado do discurso republicano -, culminando no devaneio chamado de Revolta de Canudos. Diante das inúmeras imagens construídas e destruídas de todo esse enredo, sobrevive, ainda que em tons de uma natureza morta, a imagem dos últimos defensores - "E eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados", os quais, caídos, representaram a não rendição de Canudos e a inclemência que pode uma loucura coletiva causar.

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