quarta-feira, 9 de maio de 2012

Resenha - Os Sertões

por Luciana Vasconcellos

Os Sertões, obra publicada em 1902, é um misto de literatura com relato histórico-jornalístico e é considerado por muitos a obra máxima de Euclides da Cunha. O assunto do livro gira em torno da campanha militar movida pelas tropas do governo republicano contra os “fanáticos” seguidores de Antônio Conselheiro, em Canudos, na Bahia. Enviado como correspondente do jornal O Estado de São Paulo para fazer a cobertura do conflito no arraial de Canudos, Euclides faz de suas observações e pesquisas um ensaio histórico e sociológico que se contrapõe à visão ufanista do Brasil da época, mostrando um outro lado da realidade brasileira - o sertão pessimista e vazio de Estado.
Utilizando uma linguagem que denota sua formação técnica de engenheiro, Euclides da Cunha interpreta cientificamente um acontecimento de sua época – a guerra de Canudos – procurando explicar e demonstrar que os seguidores de Antônio Conselheiro não eram criminosos que atentavam contra a República, como assim eram acusados, mas produto de fatores históricos, geográficos e raciais. "A mestiçagem racial, o ambiente desértico do sertão e resultante isolamento, o abandono por parte do governo, a incultura e a miséria – tudo concorria para um sentimento coletivo de desespero a eclodir em messianismo e fanatismo, ao mesmo tempo que de ódio contra a civilização que só intervinha para perturbar”. Euclides mostra-se então revoltado com a perversidade e violência com que as tropas governamentais trataram o assunto.
Essa visão determinista de Euclides da Cunha sobre a formação do conflito está evidenciada na divisão que ele fez de sua obra, em três partes: a Terra, o Homem e a Luta. Na primeira parte, o autor descreve a terra nordestina de um modo ao mesmo tempo poético e geofisiológico, alternando-se entre figuras de linguagem que buscam emocionar e descrições matemáticas, fazendo da terra um personagem tão importante para o enredo quanto os homens que a povoam. Na segunda parte, analisa o elemento humano da região, suas possíveis origens, abordando teorias de racialismo e seleção natural, para depois focar-se no aspecto cultural e supersticioso do nordestino, detendo-se, em especial, na figura de Antônio Conselheiro. Na terceira e última parte, narra, por fim, o desenrolar dos fatos da guerra de Canudos, a luta entre as forças do Governo e os fanáticos, além de tratar da morte de Antônio Conselheiro. Euclides da Cunha monta o cenário, apresenta os personagens e conta a história que se propôs a contar de uma forma única e peculiar, que fica no limite entre uma narrativa épica e o exagero formalista.
Em a Terra, o autor descreve extensamente a paisagem, de um modo por vezes matemático, recorrendo frequentemente a expressões das ciências exatas, ao mesmo tempo em que busca, por meio de figuras de linguagem, emergir o leitor no cenário sobre o qual discorre. Transmite a sensação de percurso, de um caminho muito longo e desesperador marcado por uma paisagem fixa no tempo, que resiste a avanços e se mostra inóspita a estranhos, de modo que somente a gente daquele chão se entende com ele. O sertão nordestino é apresentado como um obstáculo ao homem e à vida. Nesse universo, Canudos seria uma surpresa contrastante com o restante da paisagem, trazendo surpresa ao próprio autor, que afirma quase compreender o porquê dos “matutos crendeiros” acreditarem que ali era o céu.
Em o Homem, o autor analisa primeiramente a formação do homem brasileiro e depois, mais especificadamente, do nordestino. Baseia-se inicialmente em uma teoria antropológica racialista que afirma que no Brasil, devido a grande mistura de raças, seria impossível haver uma raça homogênea. Entretanto, embora discorra sobre as degenerações causadas pela mistura racial, afirma que o problema do nordestino não se encontra no “fim do tipo português”, mas na adversidade que o próprio meio impõe a seu desenvolvimento. Surge no discurso de Euclides uma espécie de Darwinismo social, em que a seleção natural “opera à custa de compromissos graves com as funções centrais, do cérebro, numa progressão inversa prejudicalíssima entre o desenvolvimento intelectual e o físico, firmando inexoravelmente a vitória das expansões instintivas e visando o ideal de uma adaptação que tem, como conseqüências únicas, a máxima energia orgânica, a mínima fortaleza moral”.
Euclides da Cunha analisa em seguida a divisão histórica entre Norte e Sul, em que os últimos seriam um povo mais heterogêneo, que não se dispersava em adaptações difíceis, formando assim “dois Brasis” distintos. O segundo Brasil, o do sertão, seria povoado por uma “mutação” dos vaqueiros desbravadores paulistas que subiram o Rio São Francisco, gerando, a partir da mestiçagem intensa entre índios e brancos, o nordestino jagunço. Essa mestiçagem não teria gerado no sertanejo um degenerado que busca regredir às raças matrizes, mas uma raça alternativa que é apenas retrógrada, que, por conta do abandono geográfico e isolamento, se desenvolve, formando uma sólida base.
Outro aspecto relevante tratado em o Homem é a descrição de Antônio Conselheiro, sua origem, sua história e sua evolução. Por pertencer a uma família cearense envolvida em conflitos na região, e também por ter perdido sua mulher para outro homem, Conselheiro embrenhou-se pelo sertão sem um rumo definido, peregrinando por várias cidades, criando para si uma imagem messiânica e profética. Tornou-se gradativamente um símbolo místico para o povo sertanejo, servindo como exemplo e líder para o povo propenso a aceitar uma tutela sobrenatural, possuindo uma indiferença fatalista pelo futuro e uma exaltação religiosa.
Em a Luta, o autor narra como um pequeno incidente desencadeia uma série de reações que acabam por eclodir com a Guerra de Canudos. Antônio Conselheiro havia encomendado e pago um lote de madeiras para a construção de uma igreja no arraial de Canudos, o lote não foi entregue e houve uma ameaça de ataque à cidade de Juazeiro. O juiz da região pediu ajuda ao governador da Bahia, que, não conseguindo resolver a situação, solicitou auxílio ao governo, sob justificativa de que Canudos era uma ameaça a toda a pátria. O Estado também o acusava de sonegar impostos e de ser antirrepublicano, usando esses argumentos para atacar o arraial de Canudos.
A parte final da narrativa de Euclides da Cunha se dedica a detalhar os fatos ocorridos durante a guerra, mostrando a falta de preparo do Exército brasileiro para as condições do campo da guerra, o mal uso de táticas e a pouca – ou inexistente – análise de eventos históricos semelhantes. Atenta-se também à reação da imprensa aos acontecimentos, distorcendo-os por vezes, elevando os fatos a proporções não verídicas. Fazendo com que o leitor se imagine no fronte de guerra, o autor descreve as batalhas com comoção em face a dor humana, deixando nítido o espírito guerreiro dos jagunços sertanejos frente a clara desproporção de recursos quando comparados a seus adversários.
As expedições para Canudos se tornam maiores e mais complexas, ao mesmo passo em que o Exército brasileiro começa a aprender mais sobre o terreno e a tática jagunça. O arraial de Canudos, mesmo destruído, seu líder morto, ainda lutava. Com quatro expedições militares, e com a movimentação do Exército em um nível nacional, Canudos caía, restando apenas quatro sobreviventes da população de mais de 20 mil. A ameaça da possibilidade de organização de “rejeitados” como os sertanejos fora eliminada.
Concluí-se, no final da leitura, que o autor pretendia demonstrar a barbárie ocorrida em Canudos, acentuando como o Estado é capaz de cometer atrocidades em nome de ideais pouco consolidados à época, como a própria noção de República. O arraial de Canudos apenas se defendeu, em momento algum atacou os invasores, não pretendiam realizar uma revolução, apenas queriam seguir com suas vidas no sistema cooperativo que haviam encontrado. Eram pessoas esquecidas, deixadas de lado pelo governo, até começarem a incomodá-lo, quando sua ausência transformou-se em uma oposta presença. Os Sertões mostra com clareza o sentido heróico da luta dos jagunços contra os fatores adversos, as condições fatalistas da terra e a injustiça social.

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