quinta-feira, 21 de março de 2013

Resenha - Macunaíma

Bruna Ponte


Mário de Andrade, um dos principais nomes do Modernismo, senão o mais representativo autor desse movimento iniciado no início do século XX, apresenta na obra "Macunaíma" as diferentes manifestações culturais que permeiam o povo brasileiro a partir do personagem central, o índio Macunaíma, e assim, com um estilo cômico e irônico de expor os feitos do herói, o autor fez com que a obra fosse de grande contribuição para o projeto de nacionalismo que almejavam os modernistas.

Fica claro ao longo da leitura o interesse do autor por diversas áreas de conhecimento e a aplicação de seu estudo no entendimento do Brasil e de questões sociais, políticas, econômicas e culturais do país naquele período, muitas delas ainda perceptíveis atualmente. Ele recheia a história de lendas populares, costumes regionais, modos de falar diferentes, e outros tipos de expressões culturais brasileiras. Além disso, ele descreve de forma notável como se dá o encontro dessas diversidades.

Na primeira parte da narrativa, Macunaíma é um índio negro nascido à margem do rio Uraricoera. Passa seus seis primeiros anos sem falar, e quando finalmente o faz, a expressão "ai, que preguiça" se torna sua fala mais marcante. O herói vive com a mãe, índia da tribo dos Tapanhumas, com a qual não possui uma relação tradicional de mãe e filho, e com os irmãos, Maanape e Jiguê. Para Macunaíma, não existe conceito de moralidade ou padrão de conduta baseado em princípios que deva ser seguido. Ele simplesmente age de acordo com seus instintos, como quando "brinca" com as mulheres do irmão. E o termo que o autor utiliza ao se referir ao ato sexual, "brincar", traduz a falta de malícia do personagem em relação à prática do ato.

Um evento marcante que muda os rumos da história é a morte da própria mãe pelo herói, que a confunde com um animal no momento da caça. Macunaíma e os irmãos, abalados pela perda, iniciam uma jornada juntos. Macunaíma se depara com CI, a Mãe do Mato, rainha das Icamiabas e a domina pelo uso da força, o que o transforma Imperador do Mato-Virgem. Ci  se torna a nova companheira dos irmãos e, em poucos meses, dá à luz a um filho do herói. Ci é mordida por uma cobra e a criança bebe o veneno do seio da mãe, e ambas falecem. Depois do enterro do menino, Ci entrega a Macunaíma uma muiraquitã, um amuleto, e sobe aos céus, por meio de um cipó. Ci se transforma na Beta de Centauro e seu filho, no guaraná.

Macunaíma e seus companheiros continuam a viagem sem rumo, até o momento em que têm de enfrentar a boiúna Capei, e na fuga, o herói perde o amuleto que herdou da amada Ci. Amparado pelo Negrinho do Pastoreiro, Macunaíma descobre que sua Muiraquitã está nas mãos de Venceslau Pietro Pietra, peruano, figura poderosa que reside em São Paulo. Os personagens, então, partem para a grande cidade à procura do amuleto. Um momento que não pode passar despercebido é a chegada dos irmãos a uma ilha, onde Macunaíma deixa sua consciência e encontra uma poça d'água encantada em que se banha, transformando-se em branco. Maanape, em seguida, entra na água e adquire um tom de pele mais claro, mas não branco. E por fim, Jiguê, que não consegue aproveitar quase nada da água encantada, fica apenas com as palmas das mãos e dos pés esbranquiçados.

Desde o início a obra é marcada por uma linguagem que é uma mistura das diferentes origens que compõem o povo brasileiro: indígena, africana e europeia. A princípio, a leitura pode parecer fatigante, pouco fluida, por conta do vocabulário "incomum" e dos muitos neologismos, adjetivos e expressões populares que o autor utiliza, mas logo é possível se adaptar à forma de escrita com que Mário de Andrade conseguiu romper com as correntes literárias que o antecederam.

Outro aspecto marcante o tempo todo durante a obra é a utilização de elementos fantasiosos, mágicos, místicos, que apresentam situações absurdas para explicar a realidade. É o caso das transformações dos seres que "morrem", como ocorre com Ci, com o filho da Mãe do Mato e do herói, e com a Boiúna, que ganham outros significados na história. Cada situação aparentemente ilógica, mostrando a influência do surrealismo, tem um porquê, na obra de Mário de Andrade. Um exemplo mais claro disso é a mudança de cor de Macunaíma e dos irmãos quando têm contado com a poça d'água. Ali o autor insere as três origens brasileiras, o branco, o negro e o índio.

A segunda parte da história narra a chegada dos irmãos a São Paulo, momento em que o autor evidencia o contraste de culturas que convivem no mesmo país. Macunaíma descobre que a moeda que vale naquela cidade grande não é o cacau, como na sua terra. O herói fica contrariado ao descobrir que precisa "trabucar" para sobreviver. Sua principal surpresa eram as máquinas-bicho. Máquina-roupa, máquina-bonde, máquina-telefone, máquina-jornal e todo aquele universo-máquina do centro urbano que o personagem não consegue compreender se é dominado pelos seres humanos ou se estes são dominados por aquele. O leitor é guiado a enxergar aquela situação através dos olhos de Macunaíma, como se realizasse um exercício antropológico de ver o que é familiar como diferente. É o momento em que a história apresenta críticas sociais, políticas e econômicas mais contundentes, mostrando como o país é desigual, não apenas rico em culturas diversas.

Um capítulo que merece destaque é o das "Cartas pras icamiabas", em que o autor critica a tentativa de impor ao brasileiro a linguagem erudita que os antecessores do modernismo empregavam. No capítulo, Macunaíma escreve, através de uma falsa e cômica linguagem erudita, para as guerreiras amazonas um relato de sua vida na nova cidade, e por meio desse relato, Mario de Andrade insere questões sérias da sociedade brasileira, inclusive sócio-econômicas. O personagem fala as sua dificuldade em entender o motivo de o povo do centro urbano falar em uma língua e escrever em outra. Macunaíma revela na carta sua nova compreensão do país em que vive, quando afirma que "Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são", afirmação que ele repete outras vezes no texto.

O poderoso Venceslau Pietro Pietra é introduzido como o Gigante Piamã comedor de gente. Ele assume na narrativa o papel do estrangeiro explorador do Brasil, aquele que rouba as pedras preciosas do povos nativos, no caso, o muiraquitã do índio Macunaíma. O ponto central da história é a recuperação do muiraquitã que está com o gigante. Macunaíma faz várias tentativas para recuperar seu amuleto que ganhou da amada Ci, e chega a se envolver em ritual de macumba, no qual com a ajuda de Exu consegue enfraquecer seu inimigo. Porém, o herói só recupera seu Muiraquitã tempos depois, quando finalmente consegue enganar o gigante e matá-lo.

No retorno para casa, Macunaíma é surpreendido com a morte de seus irmãos, e passa a viver triste e solitário, contando suas histórias a um papagaio. Num dia quente, quando o herói resolve mergulhar na lagoa, é atacado por piranhas que lhe tomam sua muiraquitã. Perdendo o gosto pela vida, o personagem então planta um cipó, que o leva ao céu, onde ele se transforma na Constelação da Ursa Maior. Um homem, um dia, chega à terra de Macunaíma, e o papagaio companheiro do herói o confidencia as aventuras vividas pelo índio. Este homem é Mário de Andrade, o intermediário que reconta a história que ouviu.

Muitos admitem que Macunaíma seja o símbolo do modo de ser brasileiro, que, presumidamente, seria aquele que tem preguiça, que vive sonhando, que não perde o gosto pelas mulheres. Mas o autor mostra na obra como é impossível classificar apenas um modo de ser que representasse toda a cultura nacional. Macunaíma seria o fundador da cultura brasileira, representante do povo brasileiro, que não tem caráter definido. Ele cria o futebol, o truco e expressões populares. A história aborda ainda o sincretismo religioso, também bastante arraigado na cultura brasileira. De fato, a obra carrega uma carga nacional muito forte, de forma que apenas entendendo minimamente a(s) língua(s) e a(s) cultura(s) brasileiras é possível compreender a história.

Outra questão presente em Macunaíma é a representação dos brasileiros como povo sem nenhum caráter. Não existiria para o brasileiro a noção de caráter, portanto, não se trata de aplicar juízo de valor às suas atitudes, classificando-as como boas ou más. O Brasil teve um desenvolvimento peculiar e seu povo não pôde desenvolver uma personalidade definida, por não pertencer a uma civilização própria, com consciência tradicional. E, assim, da forma como surgiu e se constituiu, o brasileiro é apresentado por Mário de Andrade no movimento do modernismo, criando uma oposição à visão do indianismo romântico, que não condizia com a realidade.

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