terça-feira, 22 de maio de 2012

Resenha - O Estado Nacional

por Hugo Bueno

Francisco Campos, natural de Minas Gerais, foi um advogado, político, professor de Direito e jurista, que ganhou notoriedade por sua participação na Constituinte de 1937, na redação do AI-1 de 1964 e dos Códigos Processual e Penal, em vigor até os dias atuais. O teórico também trilhou sua carreira de modo a defender um suposto autoritarismo e uma tendência antiliberal.
Um dos maiores ápices de sua carreira foi o ano de 1941, em que publicou uma análise profunda acerca da Constituição de 1937, estudo este chamado de “O Estado Nacional”. A obra, baseada em conferências, discursos e artigos do autor, traça um panorama minucioso de todo o conteúdo constitucional da época, sem, é claro, deixar de expor suas próprias ideias com convicção e fundamentos sociopolíticos.
Dentre os assuntos abordados por Campos, há a estruturação da rede pública de educação e a discussão acerca do papel da escola na sociedade, a devida conduta estatal, no que tange à seleção de candidatos aos cargos administrativos do governo, a liberdade e as fronteiras do direito de expressão da imprensa, as articulações do Poder Legislativo e o processo eleitoral mais adequado, a organização do Poder Judiciário e, também, tópicos polêmicos sobre a livre economia e seu equilíbrio com a intervenção estatal.
Nesse sentido, um dos pontos mais interessantes do livro é a forma com que o autor constrói um pensamento antiliberal, sem que o mesmo se oponha ao ideário da liberdade (nas palavras do próprio: “inimigo do liberalismo não significa inimigo da liberdade”). Ainda no que tange à noção de liberdade, Francisco Campos defende o regime corporativista como a melhor maneira de atingi-la profundamente, pois, nele, apesar de não existir a liberdade do individualismo liberal, pode-se notar a presença de liberdade de iniciativa garantida a cada indivíduo inserido no contexto da corporação.
Essa forma de delegação, no entanto, não impede o Estado de participar ativamente na tomada de decisões econômicas que sejam consideradas de importância nacional. Em outras palavras, nesse modelo, o Estado se mantém como agente econômico ativo, assim como as corporações. A única diferença é o fato de que o Estado seria o responsável por determinar a justiça, enquanto as corporações visam a defender os interesses. Assim, nessa composição, apenas os interesses justos poderiam ser defendidos pelo Estado.
Feita essa constatação, é fundamental retornar à ideia de liberdade e liberalismo para compreender um dos pontos mais profundos do autor e, como será expostos nas linhas que seguem, também um dos mais atuais de toda a obra.
De acordo com Francisco Campos, a falsa concepção de liberdade e sua miscigenação com a noção de liberalismo levou à uma atitude de omissão estatal, erroneamente compreendida pela sociedade como garantia de indivíduos livres. Essa lacuna deixada pelo Estado deu margem ao surgimento de fontes paralelas de poder político e, consequentemente, de capacidade coercitiva. É o que explica o autor no trecho abaixo:

“Com o falso pretexto da liberdade, criaram-se os poderes irresponsáveis que, aproveitando-se da chance ou das circunstâncias favoráveis, estabeleceram o seu domínio político, mediante as arregimentações partidárias em que o princípio democrático não era observado. Essas organizações, criadas fora do Estado, enfraqueceram lhe o poder e passar a exercer um verdadeiro poder de natureza pública, em proveito dos interesses privados. Os fracos, os desprotegidos, e entre estes se deve contar o interesse nacional, ficaram com a liberdade nominal, e efetivamente sem nenhum direito.
No regime liberal organizou-se um novo feudalismo econômico e político.
Somente o Estado, porém está em condições de arbitrar ou exercer um poder justo. Ele representa a Nação, e não é o instrumento dos partidos e das organizações privadas.
O regime corporativo não exclui a liberdade; apenas a torna justo o seu exercício.”

Esse fantástico trecho pode, sem grandes esforços, ser aplicado à realidade da composição política hoje vivida no Brasil e, mais especificamente, na cidade do Rio de Janeiro. Não é surpresa para qualquer carioca o quanto a fundamentação de Francisco Campos se encaixa em seu cotidiano: ainda que se questione até onde se vive atualmente um regime liberal, é incontestável o fato de que a ausência do governo em certos aspectos sociais deu margem ao surgimento de grupos privados detentores de poder coercitivo. São exemplo desses grupos a micro cadeia política estruturada a partir do tráfico de drogas e a ação arbitrária das milícias em comunidades carentes. Nessas áreas, o Estado apresenta participação mínima (senão, nula), o que leva minorias a imporem sua superioridade política e fazer uso desta para atingir interesses pessoais. O resultado é o abuso de direito do qual sofrem essas populações “esquecidas” pelo governo, como conclui Franciso Campos:

“Em toda sociedade em que há fortes e fracos, é a liberdade que escraviza e a lei que liberta.”

Não pode haver leitura mais recomendada que aquela capaz de contextualizar o leitor nas condições socioeconômicas, históricas e políticas que a motivaram e, ao mesmo tempo, se demonstrar tão atual a ponto de descrever com precisão o quadro sócio-político da sociedade brasileira. Francisco Campos conseguiu, com sutileza marcante, atingir essa máxima em “O Estado Nacional”. Eis, portanto, uma radiografia completa da situação política brasileira, blindada ao paladino poder ofuscador do tempo.

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