sexta-feira, 4 de maio de 2012

Resenha - Os Sertões

por Maria Eduarda Vianna

“De sorte que sempre evitado, aquele sertão, até hoje desconhecido ainda o será por muito tempo”
Bravo. Forte. Filho do Norte.
Canudos não foi simplesmente uma comunidade formada por fanáticos religiosos. Deve-se também rechaçar a concepção errônea de que seu intuito era oferecer resistência à República recém proclamada por meio de uma revolução. Esta, ainda incipiente, mostrava ser inócua sertões adentro, cuja realidade se revelava oposta ao pensamento positivista-progressista, característico da virada do século XX. Nesse contexto, o sertão é um cenário à parte, único...
Há quem sugira uma leitura fragmentada, começando-se pelo tomo II. Um equívoco. A singularidade da obra em tela remonta à uma ordem necessária de conhecimento – implica em conhecer pela coisa, ou seja, por sua totalidade, por sua causa e seus efeitos. Tal qual uma peça, o livro divide-se em atos, sendo seus protagonistas a Terra, o Homem e a Luta. Assim, a compreensão de uma sociedade vanguardista, calcada no espírito comunitário e no amor livre, somente é possível a partir da análise do jagunço e de sua gênese – exposta de forma científica à luz das teorias racialistas – determinada pelo fator físico geográfico.

Em que pese sua leitura possa ser maçante em um primeiro contato, o leitor deve se deixar encaminhar pelo ritmo próprio do livro, uma marcha lenta e gradual, em que cada informação reconstrói de forma ímpar este cenário complexo. “A Terra” é um tratado geográfico pincelado de poesia, de tal forma que, ao descrevê-la, o autor confere beleza e magnitude a uma terra ignota, marcada pelas secas periódicas, pelos verões queimosos e invernos torrenciais, pelas forças que a trabalham, incansáveis e temerárias.
Nesse sentido, o ponto nevrálgico da obra é a terra. Para o autor, ela vive, é ativa, determina condições de batalha, os modos de vida, o homem que habita a região e sua relação com o meio; influi determinantemente no psicológico do Exército brasileiro. Conclui-se portanto, a variável terra como fator determinante.
Em “O Homem”, são feitas inúmeras conexões antropológicas e históricas revestidas de caráter cientificista. O estudo tem início sob a premissa de uma matriz tríplice – branco, negro, índio – cuja combinação ensejará a variedade de “raças” existentes no Brasil; em última análise, a miscigenação. Define-se o habitat. Explica-se o surgimento do “povo do norte”, cujo modus vivendi deu-se por sua intrínseca relação com a terra, o que engendrou sua destemidez. Assim, é fácil inferir a importância histórica da bacia hidrográfica do São Franciso, essencial à sobreviência em meio tão inóspito.
Aplica-se ao homem, sob a égide do darwinismo social, a teoria da seleção natural. Como consequência, percebe-se o jagunço como ser aventureiro e desbravador. São arroladas suas características peculiares de forma a exprimir sua singularidade diante das demais “raças”, inclusive em função do modelo de colonização que acarretou anos de isolamento. É curiosa a comparação feita pelo autor entre o sertanejo e o gaúcho, o “povo do sul”, conhecido por sua pompa e honrarias, mas vacilante frente à investida sertaneja.
A Terra não é só um obstáculo, vai além. É um inimigo em si mesma. Sobreviver no sertão é antes aprender a viver nele; saber adaptar-se, tal qual um camaleão, ao ambiente que se expõe. Vencer Canudos implicava, primeiramente, a cada soldado, perseverar em sua existência, já que o êxito coletivo da vitória estava implicitamente condicionado a essa conquista individual.
Nitidamente, os soldados, vitoriosos no Paraguai, eram despreparados no confronto com o grande sertão. Seus trajes inapropriados os tornavam facilmente identificáveis. Sua forma de viajar era inadequada, suas estratégias desastrosas. Não à toa, foram alvo de inúmeras investidas, facilitadas, sem dúvida, pela tamanha exposição. Conhecer a terra era, por fim, ter um trunfo.
A Luta, por sua vez, é um primado relato jornalístico, imbuído de dinamismo e intrepidez. Narram-se as técnicas de guerra, analisa-se a condição psicológica do adversário diante de tantas vicissitudes. O arraial não cede facilmente frente à superioridade bélica das tropas brasileiras, que investiam contra Canudos insaciavelmente.
Foi, ao fim e ao cabo, uma devassa sanguinolenta após inúmeras investidas infrutíferas do Exército, com o fito de extirpar toda e qualquer organização distinta do estereótipo brasileiro à época. Tida como uma “revolução”, a escolha voluntária de vivência em moldes díspares aos contemporâneos foi assimilada como um atentado à soberania nacional. O projeto era, de fato, criar uma realidade à parte daquela imposta por uma sociedade estigmatizada e ainda escravocrata, mesmo com o advento da Lei da Abolição, longe de ser uma realidade. Lutava-se por liberdade.
Vale, ademais, ressaltar a inexistência de qualquer insurgência separatista do Arraial, um contraponto à realidade fictícia elucubrada por tablóides sensacionalistas da capital, o que nos leva a pensar: até que ponto “Os sertões” é apenas um romance”? Até que ponto a mídia informa, sem criar opinião e definir padrões de conduta? Até quando continuaremos a estigmatizar aquilo que se mostra diferente da nossa visão preconcebida de mundo? Será que um dia compreenderemos a função socializante das religiões? Ou a legitimidade de se brigar por uma casa própria na favela? Enfim, será que seremos capazes de nos despirmos de nossos preconceitos e atentar às especificidades desses muitos “Brasis” que estão bem diante de nossos olhos? Conseguiremos, por fim, identificar o sertanejo de Euclides na contemporaneidade? É justamente esse o desafio: ser capaz de fazer uma leitura atenta da realidade para que seja possível consertar suas mazelas antes que se tornem trágicas demais, dignas de um clássico na estante.

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