domingo, 20 de maio de 2012

Resenha - Os Sertões

por Hugo Bueno

O livro “Os Sertões”, um clássico escrito por Euclides da Cunha que marcou a literatura brasileira, desenvolve-se a partir do contexto da Guerra de Canudos, que ocorreu no sertão nordestino entre os anos 1896 e 1897. O episódio se resumiu a um confronto entre militares da recente República brasileira e o povo da cidade no interior da Bahia, fundada por Antônio Conselheiro.
Em relação à sua forma, o livro se divide em três diferentes etapas: a Terra, o Homem e a Luta. Cada uma dessas três partes da obra possui certa peculiaridade, julgada por muitos teóricos literários como proposital por parte do autor.
A Terra, por exemplo, evidencia a observação minusciosa do cenário nordestino. Dessa forma, nesse trecho, Euclides da Cunha se preocupa em descrever com máximo rigor científico a vegetação do local, seu relevo, hidrografia, fauna, etc. Partindo o litoral, ele convida o leitor a adentrar o interior do Nordeste, revelando toda a riqueza estética contida numa região, cuja natureza é considerada morta por muitos. Assim, de certa forma a Terra é responsável por contextualizar geograficamente o leitor na realidade sertaneja do Brasil daquela época, quebrando falsos paradigmas, que imperavam principalmente na sociedade urbana do início do século XX.
Já o Homem é responsável por situar o leitor em relação aos costumes e características sociopsicológicas do povo que vivia na região Nordeste do Brasil. O autor, a partir de uma profunda análise antropológica, defende que é impossível a formação do povo brasileiro a partir de uma única raça. Dessa forma, ele inaugura a ideia de que o Brasil se constitui de uma miscigenação de diferentes raças, responsáveis por formar a pluralidade de traços físicos do nosso povo. Contrariando essa constatação mais generalizada, o autor fundamenta a homogeneidade do povo sertanejo com base em suas origens: desbravadores e aventureiros paulistas teriam se isolado nas redondezas do São Francisco, tendo essa falta de contato com outras raças auferido certa perpetuação de seus atributos físicos. Nesse momento do livro, também se discorre a respeito das práticas dos vaqueiros que viviam no sertão no fim do século XIX, descrevendo detalhadamente seu cotidiano.
É válido também mencionar a maneira com que esse povoado foi constituído: Conselheiro percorreu as mais diversas cidades do Nordeste do Brasil, disseminando suas ideias e conquistando famílias com seu discurso político-religioso. Dessa forma, muitas pessoas o seguiram e formaram a cidade de Canudos, que ficou marcada pelo isolacionismo geográfico e ideológico. Afrontando os interesses da recém formada República brasileira, o líder espiritual cultivou nas pessoas que viviam naquela comunidade propostas, como a volta da monarquia como forma de governo e a reintegração do Estado e da Igreja, fragmentados pela primeira vez na história brasileira no início do regime republicano.
O desfecho desse empasse foi a Revolta de Canudos ficou conhecida pela brutalidade do confronto: mesmo que as tropas do Exército brasileiro tenham de mostrado dispostas a violar qualquer dos direitos fundamentais do homem em nome do "bem geral da nação", a bravura do povo de Canudos não convalesceu, tendo aquelas 30 mil pessoas resistido vigorosamente aos excessos do poder punitivo de um Estado pseudo-republicano.
É nesse ambiente que se desenrola a terceira parte da obra: a Luta. Nela, são descritos em pormenores toda a mecânica da guerra. O autor revela tanto o lado humanístico do confronto, apontando ao leitor as percepções psicológicas e emocionais dos habitantes da cidade, quanto a logística envolvida na operação de invasão e extermínio. Ambas essas abordagens do evento chamam atenção por proporcionar uma experiência muito mais profunda ao leitor, aproximando-o da cruel e intensa realidade da guerra.
Dessa forma, neste momento da narrativa, pode-se traçar um paralelo com a atual relação entre o poder coercitivo do Estado e a forma com que esse poder é aplicado na sociedade, desamparada de defesa. Torna-se claro a partir da leitura de Os Sertões que o Estado brasileiro, desde a sua fase púbere até os dias atuais, opera de modo absolutamente reativo ao lidar com situações que possam possivelmente comprometer a ordem social. O emprego estatal da violência em prol da manutenção do regime e do cumprimento da lei muitas vezes atropela preceitos constitucionais como os direitos fundamentais de todo e qualquer cidadão brasileiro.
Dentre eles, é válido mencionar a questão da dignidade humana, que, em diversos episódios recentes, foi esmagada pelo poderio exercido pelo Estado brasileiro. Vale mencionar os casos em que, na tentativa de solucionar problemas crônicos de planejamento urbanístico nas grandes cidades do nosso país, o governo resolve expropriar famílias de baixa renda para construir vias expressas, apagando anos de história vividas naquele lugar. Pessoas como essas, vítimas da supremacia cega do Estado, tiveram sua dignidade respeitada ao serem expulsas do invólucro santuário que é o lar, expoente máximo da individualidade humana? Agora que não têm mais teto, que essas famílias retornem a Canudos e propaguem, mais uma vez, uma mensagem de democracia honesta aos quatro cantos do Brasil, no mais agudo dos tons do Sertão nordestino.

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