terça-feira, 19 de março de 2013

Resenha - Macunaíma

por Luciana Vasconcellos

Macunaíma, obra escrita por Mário de Andrade em 1926, representa a primeira fase do movimento Modernista – a fase heróica, e busca, por meio de elos étnicos, lingüísticos e culturais, criar um personagem e sua história como expressão da essência da nação brasileira, como uma tentativa de criar um retrato do povo brasileiro.
À primeira vista, a leitura de Macunaíma apresenta-se cansativa lingüisticamente, pois o autor reiteradamente utiliza não só vocábulos indígenas, em consonância com a idéia do Modernismo de desafiar as tradições européias – no caso, a língua lusitana-,como também provérbios regionais e neologismos, criando um empecilho à compreensão do texto. Ultrapassando-se a barreira do querer entender cada ponto e o porquê de cada vírgula, transcende-se à compreensão de que o autor busca um estilo narrativo popular e dinâmico que, carregado de ironia, não tenta ser verossímil, mas fantástico e épico, permitindo que apreciemos as aventuras do herói sem nenhum caráter.
O índio de Mário de Andrade, em nítida oposição ao Romantismo ufanista, não é símbolo de força, de coragem e de bravura, como Peri, de O Guarani, é antes um ser desprovido dos valores tradicionais das sociedades européias, desapegado de virtudes cristãs,guiado pelo prazer terreno, o que faz com que o leitor, embebido na sociedade europeizada, o enxergue, por deveras vezes, como mentiroso, desonesto e definitivamente contraditório – sem nenhum caráter.
Macunaíma, “herói de nossa gente”, nasceu no interior da floresta amazônica, no meio do mato virgem, descendendo de uma tribo de índios negros chamada Tapanhumas. Ele é descrito como inteligente desde pequeno, talvez astuto pelo modo como “manipulava” todos ao seu redor. O protagonista teria se tornado adulto ao tomar um banho com caldo de mandioca braba, crescendo todo o corpo, menos a cabeça. O fato pode ser interpretado como uma crítica ao Brasil, que teria crescido rápido demais, urbanizado-se subitamente, mas permanecido imaturo, “com a cabeça pequena”. Macunaíma era um índio preguiçoso que “parasitava” seus irmãos Jiguê e Maanape, e que gostava mesmo é de “brincar”, verbo utilizado por Mário de Andrade para significar os encontros amorosos. O personagem vive sua vida brincando com várias índias, conforme sua vontade o guiasse, inclusive com as mulheres de seu irmão, Jiguê, até que um dia, encontra Ci, a Mãe do Mato, o grande amor de sua vida.
Torna-se então o Imperador da Mata Virgem, tendo um filho com Ci, que morreu prematuramente depois de mamar no único peito de Ci que fora envenenado pela Cobra Preta. A índia, tendo enterrado o filho, decide subir para o céu em um cipó e deixar esse mundo, transformando-se em estrela. Antes de fazê-lo, Ci dá à Macunaíma sua muiraquitã, talismã famoso e precioso. Tomado por tristeza, o herói resolve partir para matas misteriosas, encontrando no caminho um monstro fantástico que solta nuvens de marimbondos chamado Capei, contra o qual lutando, perde o seu talismã. Posteriormente, Macunaíma descobre, através de um uirapuru, que seu talismã estava na posse de um rico fazendeiro chamado Venceslau Pietro Pietra, dono de uma mansão em São Paulo. O índio resolve ir para a capital paulista para recuperar sua muiraquitã, dando início a uma narrativa épica que novamente desafia a verossimilhança do romance.
A partir desse ponto na narrativa, o espaço em que a história se passa caracteriza-se definitivamente como parte de uma narrativa mítica. É possível identificá-lo genericamente como o espaço geográfico brasileiro, com algumas referências ao exterior, mas sempre ignorando barreiras físicas, de modo que é possível em um momento que Macunaíma esteja em Manaus, e poucas linhas depois, em fuga, encontre-se na Argentina.
Em busca de sua muiraquitã, Macunaíma desce o Araguaia com seus irmãos rumo a São Paulo, encontrando no caminho uma fonte que o deixa branco de olhos azuis – um príncipe lindo-, faz de Jiguê cor de bronze como o índio e de Manaape, o negro que só conseguira embranquecer as palmas das mãos e as solas dos pés. Simbolizando assim as três etnias que formaram o Brasil.
Invertendo os relatos quinhentistas da literatura informativa, Mário de Andrade nos apresenta a visão dos índios ao se depararem com São Paulo urbanizada e moderna. A “civilização” é gradativamente assimilada, com as dificuldades de discernir onde termina o homem e onde começa a máquina. Ao chegar na capital paulista, Macunaíma fica sabendo que Venceslau Pietro Pietra é o gigante Piamã, comedor de gente. Depois de tentar com frustração reaver sua muiraquitã, o herói decide travestir-se de francesa, almejando comprar ou tomar em empréstimo a pedra. O gigante deixa implícito que só entregaria o talismã se a francesa resolvesse brincar com ele, o que prontamente inquieta Macunaíma e o propele em uma fuga em que o herói, em correria, percorre grande parte do território brasileiro, acabando por parar no Rio de Janeiro.
É no Rio de Janeiro que Macunaíma chega ao terreiro de Macumba da tia Ciata, a quem pede vários castigos ao gigante Piamã, buscando derrotá-lo. No Rio, o herói reencontra a desua-sol, Vei, que pretendia casar uma de suas filhas com Macunaíma, que deveria ser fiel, mas que, não consegue manter sua palavra, posto que, mal anoiteceu, já estava a brincar com uma portuguesa. Surge um novo monstro que come a portuguesa e assusta Macunaíma, que resolve voltar a São Paulo.
Em “Cartas pras Icamiabas”, apresenta cartas escritas por um saudoso Macunaíma em um relato de como era sua vida na capital paulista. A carta mostra-se uma sátira crítica aos modos de vida, desmascarando amores pecaminosos e capitalismo selvagem, destacando que o povo de São Paulo era muito peculiar pois “falam numa língua e escrevem noutra”. Enquanto isso, Venceslau Pietro Pietra está travado em uma rede, após a surra que recebera de Exu, impedindo que Macunaíma readquirisse sua muiraquitã. O herói ocupou-se no meio tempo de estudar as duas línguas da terra, como havia mencionado em suas cartas às amazonas, “o brasileiro falado e o português escrito”.
Seguindo a narrativa fantástica, o herói diz ter visto “rasto fresco de tapir” em São Paulo, frente à Bolsa de Mercadorias, criando um caos tal que, vendo seus irmãos acusados, Macunaíma os defende em amor fraternal, adentrando a multidão com rasteiras e cabeçadas, sendo por fim preso. Em meio a confusão, Macunaíma foge e consegue ver o estado do gigante Piamã, que ainda estava se recuperando, o que faz com que ele resolva tentar assustá-lo junto com sua família. Macunaíma vira peixe, vira pato e após brincar com a filha mais nova de Ceiuci, foge por Manaus e acaba se encontrando na Argentina.
Venceslau Pietro Pietra viaja à Europa, Macunaíma finge ser um pianista e tenta, junto ao governo, conseguir uma bolsa de estudo no velho continente, mas fracassa. Em sua espera faz uma jornada em que ludibriado por um macaco morre e é revivido com guaraná e uma dose de pinga. O gigante volta à São Paulo e Macunaíma finalmente decide enfrentá-lo frente a frente, conseguindo com um truque derrubá-lo na água fervente da macarronada que Ceiuci preparava. O herói, vitorioso, recupera neste momento sua muiraquitã, decidindo com seus irmãos que agora eram novamente índios e que deveriam voltar para sua tribo.
Macunaíma sente-se satisfeito de ter recuperado seu talismã, mas, ao mesmo tempo em que almeja retornar a sua terra, sente-se saudoso de São Paulo, tanto que decide levar consigo várias relíquias de São Paulo. Novamente Mário de Andrade faz uma inversão dos relatos quinhentistas, apresentando desta vez o índio que retorna ao lar com tranqueiras que lá nada servem, em paralelo ao que acontecera no processo de colonização em que os europeus retornavam ao lar com lembranças indígenas sem o menor valor prático.
Em seu caminho de volta, Macunaíma faz de um pé de carambola uma linda princesa, por quem enlouquece-se de vontade de brincar. O herói tem uma jornada feliz, até que chega finalmente ao Urariocoera natal, quando reconhece suas Raízes e chora, pois nada era como antes, e a “maloca da tribo era agora uma tapera arruinada”. Pode-se entender que há uma correlação da ruína da terra com o próprio protagonista que, mesmo tentando identificar-se como índio, sabe que mudou demais para ainda sê-lo como antes. Segue-se a decaída e o declínio do herói.
Uma sombra leprosa devora os irmãos de Macunaíma e a linda princesa, deixando o herói só e entristecido, de modo que até as aves o abandonam, à exceção de um papagaio que se torna seu confidente.Em uma última vingança de Vei, a Sol, Macunaíma é atraído pelos encantos de uiara, que o mutila, devorando-lhe uma perna e várias outras partes do corpo, desaparecendo também sua muiraquitã. O protagonista tenta ainda recuperar suas partes e seu tesouro, mas não o consegue, de modo que acaba por virar estrela.
Eis contada a história de Macunaíma – o herói sem caráter. Caráter tido aqui não como a concepção de uma realidade moral, posto que esta não poderia ser aplicada a um ser que não pertence ao meio de uma civilização cristã-européia. Caráter em um sentido de entidade psíquica permanente, manifestada esta em costumes, na língua e na história. Visto assim, Macunaíma, e por conseguinte a nação brasileira, seria sem caráter por não ser construída de retalhos e pedaços de outras pessoas e outras nações. Para o modernista Mario de Andrade, o Brasil, bem como o imaturo Macunaíma, estaria em um estado em que se pode perceber tendências gerais, mas sem afirmação de uma ou outra, sua civilização não seria própria e nem teria o pais tempo o suficiente para formar uma consciência de si. Assim sendo, a falta de caráter se daria ao mesmo tempo pela ausência de um caráter específico e pela oscilação entre tantos outros em consolidação.

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